Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam
as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo.
Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a
língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos,
acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher
no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar
determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem
diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do
que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de
nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso
pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes
do nome de um médico ou de um advogado.
Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem
de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das
ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si,
que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada
vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando
ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na
História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga
persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas
mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso
estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de
resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que
um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias
acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos
mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a
superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade
socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu
em desuso”.
Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por
proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário,
na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil
mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade
que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como
uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e
também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres
tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que
puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre
os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma
palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma
diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos
envergonhado desde sempre.
Artigo completo em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/09/doutor-advogado-e-doutor-medico-ate-quando.html
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