O mundo não é binário! Nem tudo é "zero" ou "um", "preto" ou "branco", "certo" ou "errado". A vida não é uma prova do “CESPE” (“concurseiros” entenderão).
Fernando Dantas, autor do texto - FOTO: Facebook |
Embora o que eu disse acima possa parecer
óbvio, a obviedade se limita ao plano do discurso, pois a realidade em
que vivemos revela que não é tão fácil (ou comum) se reconhecer que há
muitos pontos intermediários entre os dois extremos de qualquer escala
de medida, bem como que não há ilicitude alguma em divergir de opinião.
Não quero aqui sustentar que tudo seja relativo (embora num plano macro, cósmico, tudo seja mesmo), nem adotar uma postura de moderação exacerbada que possa me ensejar o rótulo de “metido a politicamente correto”. Penso, no entanto, que ideias, conceitos e verdades têm uma significativa carga de historicidade. O juízo que se faz acerca de determinado fato pode não mais ser adequado em outro momento, do mesmo modo que pode não se ajustar a outras circunstâncias, aparentemente equivalentes, mas em ambientes distintos. Tempo e espaço são relativos (sobre o assunto, recomendo a leitura de "Uma breve história do tempo", de Stephen Hawking; e depois dessa leitura, bom assistir ao filme "Interestelar", protagonizado por Matthew McConaughey e Anne Hathaway), mas aqui nos interessa dizer que eles (tempo e espaço) podem relativizar nossas avaliações sobre o mesmo fato. Não se trata, contudo, de flexibilizar premissas ou valores, mas apenas de compreender que verdades universais, se existentes, são muito raras.
Devemos também perceber que os acontecimentos decorrem, como regra, de um concurso de causas, e não de uma circunstância cartesianamente isolada. Quem dera explicações simples e objetivas fossem suficientes para esclarecer o porquê das coisas. Na realidade, precisar que fatores influenciam ou são determinantes para o sucesso ou insucesso das pessoas é tarefa tormentosa, que demanda muito mais reflexão do que estamos acostumados a fazer em tempos tão líquidos.
E sobre a
indagação “o que influencia ou determina o sucesso?”, muito em voga hoje
em dia em razão do prestígio de que disfrutam os “coaches” e gurus de
autoajuda, nenhuma resposta convincente é obtida por meio de uma equação
matemática que aponte a exata proporção entre esforço pessoal e fatores
externos, ou seja, entre “virtu” e “fortuna” (para Maquiavel, em
apertada síntese, “virtu” representaria as características pessoais e
circunstâncias sobre as quais o indivíduo exerce domínio; enquanto
“fortuna” corresponderia aos fatores exteriores, que aquele (indivíduo)
não pode controlar previamente). Não me parece adequado, então, dizer
que a aprovação em concurso para juiz(íza), ou mesmo o sucesso em
qualquer outro empreendimento da vida, seja determinado “apenas” pelo
esforço pessoal (“mérito”) ou, de outro modo, que decorra notadamente de
fatores externos (“empurrõezinhos”). Penso que essa é uma questão mais
afinada a outros campos do conhecimento do que ao Direito e que não
comporta vereditos tão singelos e binários, do tipo "procedente" ou
"improcedente", é “assim” ou “assado”, como estamos acostumados a
expedir no exercício da jurisdição.
Mas de fato que é
necessária muita "ralação" para se ingressar na Magistratura de
carreira, pois ninguém se torna juiz sem se esforçar muito. Pode-se até
ocupar um cargo nas instâncias superiores, ser desembargador(a) ou
ministro(a) do STF, sem ter estudado o suficiente para conseguir
aprovação em um concurso para ser magistrado de primeiro grau. Isso é
possível, pois depende mais de outros fatores do que de capacidade
técnica no sentido estrito da expressão. Para ser juiz(íza), entretanto,
todos tivemos que estudar muito e fazer escolhas que importaram
renúncias. Talvez algum(a) de nós tenha renunciado mais do que os(as)
outros(as), mas, em alguma medida, todos tivemos que abdicar de
distrações e prazeres com recompensas imediatas, até que finalmente
conseguíssemos a perseguida aprovação. A medida dessas renúncias, do
enfrentamento de adversidades, da quantidade de pedras superadas pelo
caminho, variou de acordo com a história de cada de nós.
Não
convém aqui esmiuçar minha história, tal como geralmente fazemos no
currículo da Plataforma Lattes. Embora isso pudesse ser justificado sob o
argumento de encorajar outras pessoas, em condições semelhantes, a
também correrem atrás para obter o mesmo intento (passar em um bom
concurso), soaria presunçoso apresentar aqui os fatos que são
considerados indicadores de êxito, sobretudo se eu omitisse tudo o que
pudesse ser considerado como infortúnio. Também não acho necessário
elencar as dificuldades pelas quais passei, sob pena de isso se
apresentar como razão para que alguém eventualmente me acuse de praticar
vitimização para valorizar minha trajetória. O que importa aqui é
apenas consignar que estou convencido de que o ponto onde estou em minha
caminhada foi resultado de diversos fatores, sendo que, em relação a
muitos deles, eu não tive qualquer domínio.
Não me sinto
estimulado a dizer que sou juiz pelo simples fato de que “decidi” que o
seria e corri atrás disso. Muito menos ouso afirmar que qualquer um que
“decida” poderá também ser juiz, médico, engenheiro, professor, rico ou
milionário. Esse pensamento, corriqueiro nos discursos sobre
“empreendedorismo”, pode não ser cabível em todas as histórias pessoais.
Não penso assim por achar que eu seja melhor ou pior do que qualquer
outra pessoa, mas pelo fato de acreditar que as possibilidades
acessíveis aos indivíduos variam no espaço e no tempo, ou seja, resultam
do caráter histórico da cada realidade.
Alguém imaginou que
Aylan Kurdi conseguiria sair da Síria e chegar em segurança a um outro
país, mas a foto do seu corpo em uma praia da Turquia foi a sentença que
demostrou o contrário. Talvez alguém diga a Omran Daqneesh que, se ele
esforçar realmente, poderá ser qualquer coisa que queira, quiçá juiz na
Síria, mas a cena em que ele, assustado no interior de uma ambulância,
tenta limpar o sangue de sua cabeça, revela que as coisas não são bem
assim. A realidade distingue muito duramente possibilidade de
probabilidade, e em algumas circunstâncias quase equiparam esta àquela,
ou seja, é tão improvável que pode ser tido como impossível.
Sim, os exemplos foram extremados, mas se prestaram a ilustrar que, ao
menos em um caráter absoluto, o futuro de cada indivíduo não é fruto
apenas de escolhas próprias. Nem tudo é “virtu” ou resulta
exclusivamente do esforço pessoal.
E tomando um exemplo
mais próximo do ordinário (embora os acima apresentados, mesmo
extraordinários, sejam reais), poderia dizer que meu pai, seu Otacílio,
taxista em atividade há mais 50 (cinquenta) anos em Natal/RN (será, se
já não é, o “decano” da profissão em sua cidade), não foi juiz (outra
coisa) porque não quis ou não se esforçou o suficiente. Ao atingir a
maioridade, eu poderia ter dito ao meu pai: “se você quiser, meu pai,
seremos juízes daqui a alguns anos. Basta que façamos vestibular para
Direito (na época eu fazia Engenharia Mecânica) e nos esforcemos muito.
Antes disso, contudo, o senhor faz supletivos de primeiro (ensino
fundamental) e segundo (ensino médio) graus, pois com sua escolaridade
ainda não dá para se matricular na universidade. Mas não se desanime,
pai, pois tudo isso depende apenas do nosso esforço pessoal e, não tenho
dúvidas, ‘nós podemos.’”
Meu pai “é o cara”! Para mim, ele é
a pessoa mais trabalhadora e correta que conheço, além de ser muito
inteligente (cognitiva e emocionalmente). Mas, com toda sinceridade, não
creio que ele, se decidisse ser juiz e se dispusesse a se esforçar
muito, conseguiria alcançar esse propósito, mesmo que a esse intento se
dispusesse quando ainda era jovem. A alguém que, pelas circunstâncias da
vida, foi forçado a deixar a escola a fim trabalhar na roça família,
não pode ser simplesmente atribuída a pecha de ter se esforçado pouco.
Algumas possibilidades estavam ao alcance do meu pai, que tenho como um
vitorioso na vida e que é feliz em sua profissão, mas dizer que tudo ele
poderia conquistar, dependendo apenas de uma decisão e do seu esforço
pessoal, é certamente forçar a barra e ser injusto com sua biografia.
E que não se faça referência, como argumento contrário, à
história do colega juiz e ex-borracheiro que estudou por 200kg de
resumos, nem à do médico que vendia balas nos ônibus enquanto fazia
faculdade. Essas histórias são emocionantes e revelam uma extraordinária
força de vontade, foco e dedicação dos seus protagonistas, mas não
refutam o que eu ponderei anteriormente. Em primeiro lugar, há de se
considerar que a situação deles, embora muito mais árdua e penosa do que
a da maioria daqueles que conseguiriam o mesmo propósito, não era mais
desfavorável que a de Aylan Kurdi, Omran Daqneesh ou de Otacílio (meu
pai). Além disso, a excepcionalidade daqueles feitos, em vez de
fragilizar a regra de que o êxito decorre de um concurso de fatores
(pessoais e exteriores), termina é por confirmá-la, na medida em que
demonstra não ser ordinário que pessoas submetidas a condições
extremamente adversas obtenham os mesmos resultados que aquelas mais
afortunadas (não no sentido de possuir dinheiro ou outros bens
materiais, mas da “fortuna” a que se referiu Maquiavel, conforme já
mencionado aqui).
A reflexão que faço, assim, é a de que é
necessário temperar a noção de meritocracia. Se não convém diminuir a
importância do esforço pessoal como um dos fatores responsáveis pelo
sucesso ou insucesso, da mesma maneira não se deve sustentar que, apenas
em razão do mérito próprio, cada um possa ser ou ter o que desejar.
Também considero inadequado julgar o que seja êxito ou fracasso
a partir de uma perspectiva universalista. O que significa “vencer na
vida” é eminente relativo, e diria até subjetivo. Enquanto para uns seja
ter muito bens, para outros pode ser dispor de muito tempo para o
lazer. Há, também, aqueles (embora cada vez mais raros) cuja noção de
vida boa não se relaciona necessariamente com a ideia de “ter”. Mas o
que importa é compreender que a minha ótica é, dentre muitas
possibilidades, apenas uma referência, não necessariamente e nem
exclusivamente certa. Como disse logo no início, o mundo não é binário,
tampouco uma moeda com apenas dois lados.
Oportuno também
esclarecer que eu não estou aqui a afirmar que se deva atribuir ao
Estado a responsabilidade por prover as condições necessárias a permitir
que todos, afortunados ou não (na concepção de Maquiavel), tenham a
possibilidade de realizar seus projetos de vida boa. Mas uma coisa é
certa: o Estado existe e, ao menos no campo teórico e hipotético, sua
finalidade primordial é promover o bem comum (leiamos o preâmbulo da
nossa Constituição para lembrar). Assim, cabe a nós, como sociedade,
deliberarmos em que medida deverá se verificar essa participação do
Estado, também levando em conta a premissa de que não há apenas duas
possibilidades: um Estado que tudo faz ou um que se abstém de qualquer
ação.
E para finalizar (que texto enorme!), acredito que o mais importante é aceitar que qualquer um divirja do pensamento alheio, sem que tal fato converta em adversários aqueles que somente têm diferentes pontos de vista. Embora eu não creia que devamos sair por aí opinando prodigamente sobre todo e qualquer assunto, cada um pode pensar o que quiser e pode também, respeitosamente, exercer seu direito de livre manifestação. Devemos, pois, deixar de lado a insistência de polarizar tudo, como um tino maniqueísta que nos conduz a afirmar que quem não concorda comigo está errado ou, pior ainda, que merece ser negativamente adjetivado por essa posição de divergência.
É como penso... agora.
FONTE: Facebook
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