A internet é uma imensurável memória coletiva não facilmente apagável, pois suas recordações não estão estocadas aqui ou ali, mas estão difusas por milhares de computadores espalhados pelo mundo. Até o advento da internet, as memórias coletivas estavam armazenadas nas bibliotecas, com seus livros, jornais, revistas e, mais recentemente, fitas e discos de áudio e vídeo. As bibliotecas cumpriam a função não só de preservar essa memória coletiva, mas também a de selecionar as que seriam lembradas e as que seriam relegadas ao esquecimento. E isso poderia ser feito tanto conscientemente com a queima de um livro quanto inconscientemente com o desprezo de um título que não se considerasse digno de figurar no catálogo.
A internet substituiu as bibliotecas como memória coletiva, mas não como filtro do que será lembrado. Qualquer texto, imagem, áudio ou vídeo publicado na rede está sujeito a ser lembrado para sempre. A internet não esquece. E o esquecimento das pessoas está condicionado ao desinteresse pelo material publicado. Para sorte ou azar de Carolina, sua intimidade desperta grande interesse do público e estará disponível na internet até que ela - Carolina - seja esquecida.
Não há remédio jurídico que possa ser usado para retirar todas essas fotos da rede. A esterilidade do direito em regular o conteúdo da internet não deve ser interpretada, porém, como um obstáculo a ser superado, mas como uma característica inerente à própria arquitetura da rede que deve ser respeitada por qualquer sistema jurídico que se pretenda democrático.
Essa memória inolvidável é incômoda e angustiante para Carolina e outras vítimas de pessoas inescrupulosas que utilizam a rede para propagar conteúdos ofensivos, mas é o preço a se pagar por um espaço público em que o poder estatal, e mesmo o poder econômico, não são capazes de censurar. É essa inexorabilidade da internet que faz dela o espaço público por excelência, que não pode ser domado por tiranos, milionários ou celebridades. E é isso que a torna tão efetiva na luta contra regimes autoritários e abusos do poder político e econômico nos países democráticos.
Somos a primeira geração capaz de manter viva uma memória apenas com um simples computador ligado à internet. E isso é bom, pois temos uma fonte inesgotável de informação sendo transmitida e armazenada a cada dia que não pode ser censurada por quem quer que seja. No entanto, uma memória coletiva onisciente não dispõe de filtros de conteúdo centralizados, tais como editores e bibliotecários. Uma única pessoa mal-intencionada pode aproveitar-se dessa ausência de controle para destruir reputações publicando notícias falsas ou informações confidenciais protegidas pelo direito à privacidade. E o direito nada pode fazer para apagar os danos causados. A internet é um espaço tão essencialmente público que, uma vez que a informação caia na rede, já não se pode mais privatizá-la. Torna-se insuscetível de reapropriação.
O que o direito pode e deve fazer é punir quem se utiliza covardemente da rede para conspurcar reputações ou violar a intimidade de quem quer que seja. Para isso existem os crimes de injúria, calúnia e difamação, mas ainda não há um crime que puna a divulgação não autorizada de fotos íntimas na rede ou em qualquer outro meio. Uma lacuna que precisa ser suprida, sob pena de tais casos serem relegados apenas à esfera cível, na qual os responsáveis poderão ser condenados no máximo ao pagamento de uma indenização pecuniária à vítima. No caso específico de Carolina, no entanto, se for provado que houve o pedido de dinheiro para que as fotos não fossem publicadas, estaria caracterizado o crime de extorsão e o responsável poderia ser condenado a uma pena que varia de 4 a 10 anos de reclusão.
Nenhuma punição ou indenização, porém, apagará as fotos de Carolina da rede. Elas se tornaram públicas quando foram divulgadas e o direito não poderá restaurar seu caráter privado. Ao condenar o homicida, o tribunal não ressuscita a vítima. Da mesma forma, nenhum tribunal poderá apagar qualquer conteúdo publicado na rede.
A internet não respeita autoridades. Péssimo para quem tem a privacidade ou a honra nela devassada. Ótimo para a democracia.
(ESTADÃO)
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