domingo, 7 de dezembro de 2014

VIOLÊNCIA UNIVERSITÁRIA

Fiquei chocado com os casos de estupro em festas da faculdade de medicina da USP. A julgar pela repercussão na imprensa, não fui só eu, mas a condição de ex-aluno me deixou mais revoltado.

É evidente que as alunas violentadas não foram as primeiras universitárias atacadas por colegas no Brasil. Esses casos acontecem há anos, acobertados pelo manto perverso da condescendência com o criminoso e do preconceito contra a mulher, pragas que contaminam e envergonham a sociedade brasileira.

O estupro é dos crimes mais abjetos. Nas cadeias, as vinganças mais diabólicas a que assisti foram perpetradas contra estupradores. No mundo do crime, a repugnância causada por eles é tão universal, que no Estado de São Paulo cumprem pena numa penitenciária exclusiva, única forma de garantir-lhes a integridade física.

O lado mais desprezível da violência sexual contra a mulher é o de considerar a vítima culpada pela agressão sofrida. Ninguém atribui a culpa do roubo ao assaltado que sai de casa com dinheiro no bolso; contra a mulher estuprada, no entanto, paira no ar a suspeita de que a sedução tenha partido dela.

No caso particular das festas universitárias em que o álcool é consumido à larga, a justificativa está à mão do primeiro cretino: “Quem mandou ficar bêbada? Se quisesse ser respeitada não teria bebido”.

Como assim? O fato de uma mulher ter bebido mais do que devia, é a senha para que qualquer boçal se aproveite dela? Em outras épocas, fiquei bêbado numa festa do centro acadêmico sem que nenhum colega tenha se sentido no direito de me estuprar (pelo menos até onde me é dado saber).

Vários de meus colegas minimizam o caso das alunas violentadas, com o argumento de que a repercussão na imprensa foi desproporcional por ter ocorrido com estudantes de medicina da USP, fosse com meninas de faculdades particulares de direito, cinema ou ciências sociais não causaria tal clamor nem ganharia espaço na mídia. Reconhecem que esses acontecimentos são deploráveis, mas apenas refletem o comportamento de nossa sociedade.

Como assim? Desde quando aceitar a covardia das agressões contra as mulheres que não são “bem nascidas” é justificativa para fazer vistas grossas àquela cometida contra as outras?

A indignação geral contra os estupros cometidos justamente por estudantes de medicina é mais do que justificada. No exercício de nossa profissão, temos acesso ao corpo dos pacientes. O mínimo que a sociedade espera de nós é que saibamos respeitá-lo, pertençam a mulheres ou homens, embriagados, drogados, anestesiados ou não.

Depois do leite derramado, o corpo docente da faculdade de medicina se propõe a criar comissões para tratar do problema com providências que vão da investigação ao apoio psicológico às alunas violentadas e a medidas educativas para reforçar a aceitação da diversidade sexual e racial.

Acho bonito. Quem pode ser contrário à educação?

O caso desses estupros, entretanto, não representa mero desvio de conduta de meninos despreparados, carentes de orientação e acolhimento. A maioria esmagadora dos alunos da Medicina da USP pertence a uma elite estudantil que se preparou nos melhores colégios de São Paulo, condição essencial para enfrentar o vestibular mais disputado do país. Não foram criados na violência da periferia nem abusados na infância a ponto de distorcer-lhes a personalidade e deformar-lhes o caráter.

No caso deles, o caldo de cultura para a brutalidade sexual que agora nos choca não vem do berço, mas de uma prática estúpida e imbecilizante que se perpetua nas faculdades: o trote. Até quando vamos conviver com essa iniquidade institucionalizada, antiquada, violenta e humilhante dirigida contra aqueles que deveriam ser acolhidos com fraternidade no ambiente universitário?

É no trote que se estabelece e perpetua a relação de poder que os veteranos impõem aos calouros e às calouras. O estupro é parte inseparável desse contexto agressivo. Tratá-lo com benevolência é compactuar com ele.

Não há o que discutir: estupro, no Brasil é crime previsto no Código Penal para pobres e ricos, tenham estudado ou não. É caso de polícia e cadeia. Não qualquer cadeia, porque a bandidagem estupra e mata estupradores.

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